1. | A Ausência de Deus | |
2. | Batendo à porta | |
3. | Caminho de interiorização | |
4. | Como aproveitar o tempo | |
5. | Dirigindo-se a Deus | |
6. | Duas meditações | |
a. | A Mãe de Deus | |
b. | O «Staretz» Silouan |
1. A ausência de Deus
ma vez que me proponho ajudar na prática inicial da oração, gostaria de deixar claro o que entendo por "aprender a orar." Não o tentarei justificar ou explanar de um modo especulativo. Eu gostaria de mostrar a que é preciso estar atento e o que se deve fazer quando se desejar rezar. Como eu mesmo sou principiante, parto do princípio de que também vocês o são, e juntos tentaremos começar. Não me dirijo àqueles que aspiram a uma oração mística ou a mais elevados estados de perfeição, pois tais coisas aprendemo-las por nós mesmos. Quando Deus irrompe através do nosso ser ou quando nós mergulhamos em Deus, em certas circunstâncias excepcionais, porque as coisas subitamente se nos manifestam com uma profundidade que antes nunca tínhamos experimentado, ou porque repentinamente descobrimos em nós um recôndito no qual persistimos em oração e de onde esta jorra, então não há problemas de oração. Quando estamos atentos a Deus, colocamo-nos em sua presença, adoramo-lo, falamos-lhe.
Coloca-se então, desde o início, um problema verdadeiramente importante: a situação daquele para quem Deus parece estar ausente. É disso que eu gostaria de falar agora. Obviamente, não estou me referindo à ausência real de Deus — Deus nunca está realmente ausente, — mas à sensação da ausência de Deus. Estamos perante Deus, clamamos para um céu vazio, do qual não obtemos resposta. Voltamo-nos para todas as direções e não o achamos. O que devemos pensar de tal situação?
Em primeiro lugar, é muito importante lembrar que a oração é um encontro e uma relação, uma relação que é profunda. Essa relação não pode ser forçada, nem da nossa parte nem da parte de Deus. O fato de que Deus se possa fazer presente ou deixar-nos com a sensação da sua ausência, faz parte dessa relação viva e real. Se nós quiséssemos arrastá-lo ao nosso encontro, forçá-lo a vir a nós simplesmente porque escolhemos esse momento para nos encontrarmos com ele, não haveria relação nem encontro. Podemos fazer isso com uma imagem, com a imaginação ou com diversos ídolos que podemos colocar diante de nós em vez de Deus; nada semelhante podemos fazer com o Deus vivo, tal como não podemos fazê-lo com pessoa alguma. A relação deve iniciar-se e desenvolver-se em mútua liberdade. Se olharmos para o relacionamento em termos de relação mútua, veremos que Deus pode queixar-se de nós muito mais do que nós dele. Queixamo-nos de que ele não se faça presente nos poucos minutos que lhe reservamos. No entanto, o que dizer das vinte e três horas e meia, durante as quais Deus pode estar batendo à nossa porta, enquanto nós respondemos: "Estou ocupado, desculpe" ou simplesmente nada respondemos, porque nem sequer o ouvimos bater à porta do nosso coração, da nossa mente, da nossa consciência ou da nossa vida? Eis, portanto, uma situação em que não temos o direito de nos queixar da ausência de Deus, porque nós nos ausentamos dele muito mais do que ele de nós.
Em segundo lugar, é muito importante considerar que um encontro face a face com Deus é sempre, para nós, uma ocasião de julgamento. Não podemos encontrar-nos com Deus na oração, na meditação ou na contemplação, sem que sejamos salvos ou condenados. Eu não me refiro aos termos definitivos da salvação ou condenação eternas como já concedidas e recebidas, mas sim a um momento crítico, a uma crise. "Crise" vem do grego e significa "julgamento." O encontro com Deus face a face, na oração, torna-se um momento crítico em nossas vidas. Temos de agradecer-lhe que ele nem sempre se nos apresente quando desejamos encontrá-lo, porque poderia ser que não fôssemos capazes de suportar tal encontro. Lembremos as muitas passagens da Escritura que nos mostram quanto é perigoso acharmo-nos face a face com Deus, pois Deus é poder, Deus é verdade, Deus é pureza. Portanto, o primeiro pensamento que devemos ter, quando não sentimos de modo palpável a presença de Deus, é de gratidão. Deus é misericordioso. Ele não vem de modo intempestivo. Dá-nos uma oportunidade de nos julgarmos a nós mesmos, de compreendermos, de não chegarmos à sua presença num momento em que isso pudesse significar condenação.
Gostaria de apresentar um exemplo. Há muitos anos, um homem me procurou. Pediu-me que lhe mostrasse Deus. Disse-lhe que não podia, mas acrescentei que, certamente, se eu pudesse, ele não seria capaz de vê-lo, porque pensei — e penso agora: — para encontrar Deus, é preciso que tenhamos algo em comum com ele, algo que nos dê olhos para ver, perceptibilidade para captar. Perguntou-me então por que eu pensava assim. Sugeri-lhe que refletisse alguns momentos e me dissesse se havia alguma passagem, no Evangelho, que particularmente o tocasse, para que eu descobrisse a conexão entre ele e Deus. Respondeu-me:
— Sim, no oitavo capítulo do Evangelho segundo João, a passagem que diz respeito à mulher surpreendida em adultério.
Eu lhe disse:
— Bom, esta é uma das mais belas e comoventes passagens. Agora recline-se e pergunte a si mesmo qual é o seu papel na cena descrita. Será o papel do Senhor? ou, ao menos, está do seu lado, cheio de misericórdia, de compreensão e cheio de fé para com essa mulher que pode arrepender-se e tornar-se uma nova criatura? Será o papel da mulher surpreendida em adultério? Ou será de um daqueles homens mais velhos que imediatamente se afastaram porque estavam cientes dos seus próprios pecados? ou de um dos jovens que ainda esperaram?
Pensou por alguns minutos e respondeu:
— Não, penso que sou o único judeu que não teria desertado, mas apedrejado a mulher.
Eu disse:
— Dê graças a Deus por não ter consentido que se deparasse com ele face a face.
Talvez seja esse um exemplo extremo. No entanto, em que medida poderá levar-nos a reconhecer em nós mesmos situações semelhantes? Isso não quer dizer que recusemos categoricamente a palavra de Deus ou o exemplo de Deus, mas que nós fazemos, de um modo menos violento, o que os soldados fizeram durante a Paixão. Gostaríamos de vendar os olhos de Cristo para podermos desferir livremente os nossos golpes, sem sermos vistos. Não é isso o que em certa medida fazemos quando ignoramos a presença divina e agimos segundo os nossos próprios desejos, os nossos caprichos, contrariamente a tudo o que é vontade de Deus? Tentamos cegá-lo, mas, na verdade, cegamo-nos a nós mesmos. Em tais momentos, como podemos nós chegar à sua presença? Certamente podemos, em arrependimento e pesarosos; não porém da maneira como desejávamos ser imediatamente recebidos — com amor, com amizade.
Examinemos algumas passagens do Evangelho. Gente muito mais notável do que nós hesitou em receber Cristo. Lembremos o centurião que pediu a Cristo que curasse o seu servo. Cristo disse: "Eu irei curá-lo." Mas o centurião replicou: "Senhor, não sou digno de receber-te sob o meu teto; basta que digas uma palavra e o meu criado ficará curado." Fazemos nós o mesmo? Voltamo-nos para Deus e lhe dizemos: "Não é preciso que me faças sentir a tua presença de modo palpável. Basta que digas uma palavra e eu serei curado.
Basta que digas uma palavra e tudo se resolverá. De nada mais preciso, no momento." Ora, consideremos o exemplo de Pedro em sua barca, após a pesca milagrosa, caindo de joelhos e dizendo: "Afasta-te de mim, Senhor, que sou um homem pecador." Pede ao Senhor que deixe a sua barca, porque se sente humilde, e sente-se humilde porque subitamente compreendeu a grandeza de Jesus. Porventura é assim que nos comportamos? Quando lemos o Evangelho e a imagem de Cristo glorioso nos surge arrebatadora, quando rezamos e tomamos consciência da grandeza, da santidade de Deus, acaso dizemos: "Eu sou indigno de que ele se aproxime de mim"? E não falemos de todas as ocasiões em que deveríamos reconhecer que ele não pode vir a nós, porque não estamos para recebê-lo. Queremos dele coisas, mas a ele não queremos, de modo algum. Será isso um relacionamento? Conduzimo-nos desse modo com os amigos? Amamos nós o amigo, ou visamos aquilo que a amizade nos pode dar? Ocorre o mesmo no que diz respeito ao Senhor?
Examinemos as nossas orações, as suas e as minhas. Pensemos no calor, na profundidade e intensidade da nossa oração, quando se refere a alguém a quem estimamos ou a um assunto da nossa vida. O nosso coração está então aberto, o íntimo do nosso ser todo recolhido em oração. Quer isso dizer que, para nós, é Deus quem conta? Não, de modo algum. Revela apenas o nosso interesse por aquilo que pedimos. Quando fazemos a nossa oração apaixonante, profunda, intensa, pela pessoa que amamos ou pela situação que tememos, e subitamente esfriamos ao passarmos para outro assunto de menos interesse para nós, o que terá mudado? Foi Deus que esfriou? Foi Deus quem se retirou? Não; isso revela que toda a exaltação, toda a intensidade da nossa prece não tinha nascido da presença de Deus, da nossa fé nele, do nosso desejo dele, da nossa consciência dele; tinha nascido unicamente do nosso interesse por aquele, por aquela ou por aquilo, em vista de quem ou de que rezávamos, não por causa de Deus. Como podemos então surpreender-nos ao sentirmos a ausência de Deus? Somos nós que nos ausentamos, somos nós que esfriamos no momento em que não mais nos ocupamos de Deus. Por que? Porque ele não nos interessa muito.
Há, porém, outros motivos pelos quais Deus se torna "ausente." Enquanto formos autênticos, verdadeiramente nós mesmos, Deus pode estar presente e pode fazer algo conosco. Entretanto, a partir do momento em que tentarmos ser aquilo que não somos, não haverá nada a fazer: nós nos tornaremos uma personalidade fictícia, uma presença irreal; e uma presença irreal não pode aproximar-se de Deus.
Para estarmos em condições de rezar, devemos estar integrados num contexto que é definido como o Reino de Deus. Devemos reconhecer que ele é Deus, que ele é Rei, devemos abandonar-nos a ele. É preciso, ao menos, estarmos interessados na sua vontade, mesmo que não nos sintamos, por ora, capazes de cumpri-la inteiramente. Mas se não o estamos, se tratamos a Deus como fez o jovem rico que, por ser muito rico, não pôde seguir a Cristo, então, como poderemos encontrar Deus? Assim, o que muitas vezes gostaríamos de possuir, o que ardentemente desejamos, através da oração, através do profundo relacionamento com Deus, é apenas algum período de felicidade. Não estamos preparados para vender tudo quanto possuímos a fim de adquirirmos a pérola preciosa. Como conseguiremos, então, essa pérola de grande preço? É ela que esperamos alcançar? Não acontece o mesmo nas relações humanas? Quando um homem e uma mulher se apaixonam, os outros não mais lhes interessam nesse sentido. Resumindo, diz um ditado antigo: "Quando alguém tem uma noiva, não mais está rodeado de homens e mulheres, mas de gente."
Não é isso o que poderia, o que deveria acontecer com todas as nossas riquezas, quando nos voltamos para Deus? Seguramente, elas se tornariam pálidas e cinzentas, apenas um indefinido fundo contra o qual a única figura importante apareceria em relevo intenso. Nós gostaríamos apenas de um toque de azul no quadro geral da nossa vida, na qual há tantos recantos sombrios. Deus está preparado para se manter fora dela, está preparado para assumi-la completamente, como uma cruz, mas não está preparado para ser, em nossa vida, apenas uma peça
Por isso, ao pensarmos na ausência de Deus, não seria necessário perguntar-nos a nós mesmos de quem é a culpa? Responsabilizamos sempre Deus, acusamo-lo, quer diretamente, quer perante os outros, de estar ausente, de nunca estar presente quando dele precisamos, nunca responder quando a ele nos dirigimos. Por vezes tornamo-nos "piedosos" (muito piedosos, entre aspas) e dizemos piamente: "Deus está provando a minha paciência, a minha fé, a minha humildade." Achamos mil maneiras de transformar os juízos de Deus em novas formas de elogio a nós mesmos. Somos tão pacientes que podemos até suportar Deus. Não é assim? Quando eu era jovem sacerdote, fiz um sermão — um dos muitos que preguei numa paróquia — e uma jovem veio ter comigo e me disse:
— Padre Antônio, o senhor deve ser terrivelmente mau.
Repliquei-lhe:
— Sou mau, não há dúvida. Mas, como soube disso?
Ela respondeu:
— Porque o senhor descreveu tão bem os nossos pecados, que os deve ter cometido todos!
Certamente, a chocante descrição que lhes faço agora dos maus pensamentos e das más ações diz mais respeito a mim do que a vocês; porém, talvez lhes diga também respeito, embora em menor escala.
Se queremos rezar, devemos partir da certeza de que somos pecadores, necessitados da salvação; de que estamos separados de Deus, mas não podemos viver afastados dele; de que tudo o que oferecemos a Deus é a nossa ânsia desesperada de nos comportarmos de tal modo que Deus queira receber-nos e nos acolha no arrependimento, nos acolha com benevolência e com amor. E assim, desde o início, a oração preparatória é verdadeiramente a nossa humilde ascensão para Deus, um momento em que nos voltamos para ele, temerosos de nos aproximarmos, pois sabemos que, se o encontrarmos demasiadamente cedo, antes que a sua graça nos tenha podido ajudar a preparar o encontro, acontecerá o julgamento. E tudo o que podemos fazer é voltar-nos para ele com toda a reverência, toda a veneração e suprema adoração, com todo o amor de Deus de que formos capazes, com toda a atenção e seriedade ao nosso alcance, e pedir-lhe que faça algo conosco que nos permita encontrá-lo, face a face, não para o julgamento nem para a condenação, mas para a vida eterna.
Gostaria de lembrar, aqui, a parábola do fariseu e do publicano. Chega o publicano e se coloca no fundo da igreja. Ele se sente condenado, sabe que, em termos de justiça, nenhuma esperança lhe resta porque é um estranho ao Reino de Deus, Reino da eqüidade e Reino do amor; não pertence nem a um nem a outro. Mas, na cruel, violenta, abominável vida que levara, algo aprendeu de que o honrado fariseu nenhuma idéia tinha. Ele aprendeu que, num mundo de competição, num mundo de animais de rapina, num mundo de crueldade e covardia, a única esperança que nos resta reside num ato de misericórdia, num ato de compaixão, ato inteiramente inesperado, que não radica em nenhum direito nem sequer em relações naturais capazes de suspender a ação cruel, violenta, impiedosa do mundo em que vivemos.
Contudo, ele sabe, por exemplo, sendo ele mesmo um usurário, um prestamista, um ladrão etc., que há momentos, inexplicavelmente — porque isso não faz parte da perspectiva do mundo, — momentos em que ele perdoará uma dívida; repentinamente o seu coração se torna indulgente e vulnerável; ou também, noutra ocasião, não poderá lançar na prisão alguém, porque um rosto lhe trouxe algo à lembrança ou uma vez lhe foi diretamente ao coração. Não há lógica nisso. Pois isso não faz parte do horizonte do mundo e também não é o seu modo normal de proceder. É algo que irrompe de dentro, que é inteiramente absurdo, a que ele não pode resistir. Mas, sabe também, provavelmente, quantas vezes ele mesmo foi salvo do desastre final, graças a essa intrusão da inspirada e extraordinária misericórdia, compaixão, perdão.
Por isso, ele permanece no fundo do templo, pois não ignora que todo aquele domínio interior, a igreja, é um reino de justiça e amor divino, ao qual ele não pertence e no qual não pode penetrar. Mas, ele sabe também, por experiência, que o impossível acontece e, por isso, diz: "Tem piedade, quebra as leis da eqüidade, quebra as leis da religião, desce na misericórdia até nós que não temos direito nem a sermos perdoados nem a sermos admitidos."
Penso eu: esse deveria ser, constantemente, o nosso ponto de partida.
De certo você se lembra de duas passagens em que Jesus afirma a são Paulo: "É na fraqueza que se manifesta a minha força." Essa fraqueza não é a que manifestamos ao pecar e ao esquecermos Deus, mas uma fraqueza que consiste em sermos inteiramente dóceis, inteiramente transparentes, inteiramente abandonados nas mãos de Deus. Habitualmente nós tentamos ser fortes e impedimos Deus de manifestar o seu poder.
Todos nos lembramos de como aprendemos a escrever quando éramos crianças. A nossa mãe nos colocava um lápis na mão, tomava a nossa mão na sua e começava a movimentá-la. Como não sabíamos o que ela tencionava fazer, deixávamos a nossa mão completamente livre na sua. Eis o que eu pretendo dizer com o poder de Deus manifestando-se na fraqueza. Podemos ainda tomar, como termo de comparação, a vela de um barco. Somente por ser frágil, uma vela pode captar o vento e ser usada para manobrar o barco.
Se em vez da vela fosse colocada uma forte prancha, não se poderia operar. É, pois, a fraqueza da vela que a torna sensível ao vento. O mesmo ocorre com a manopla e a luva cirúrgica. Tão forte é a manopla quão frágil é a luva. Esta, contudo, em mãos hábeis, pode fazer milagres, porque é flexível. Assim, uma das coisas que Deus persiste em fazer-nos ver, é que devemos substituir a imaginária e insignificante força perturbadora que nós temos, pela fragilidade da entrega e abandono em suas mãos. Vou dar-lhes um exemplo.
Há vinte e cinco anos, um amigo meu, pai de dois filhos, foi morto durante a libertação de Paris. Seus filhos sempre me haviam detestado porque tinham ciúmes de que seu pai fosse meu amigo, mas, quando o pai morreu, voltaram-se para mim, pois eu fora amigo de seu pai. Um dos filhos era uma moça de quinze anos, que certo dia me procurou no meu consultório (eu era médico antes de me tornar sacerdote). Ela viu que, além do meu equipamento médico, eu tinha um volume dos Evangelhos sobre a mesa. Então, com toda a segurança própria da juventude, me disse:
— Não consigo entender como é que um homem considerado instruído pode acreditar em coisas tão estúpidas.
Eu lhe perguntei:
— Já leu?
— Não.
Então acrescentei:
— Lembre-se de que somente as pessoas mais idiotas emitem juízos sobre coisas que não conhecem.
Depois disso, ela leu os Evangelhos e ficou tão interessada que toda a sua vida mudou, porque ela começou a rezar e Deus lhe deu uma experiência da sua presença, na qual ela se manteve por algum tempo. Depois, foi atingida por uma doença incurável e, sendo eu já sacerdote e estando na Inglaterra, escreveu-me: "Desde que o meu corpo começou a enfraquecer e a decair, o meu espírito tornou-se mais vigoroso do que nunca e eu sinto a presença divina de modo muito fácil e alegre." Voltei a escrever-lhe: "Não espere que isso dure muito. Quando você tiver perdido um pouco mais as forças, já não conseguirá voltar-se para Deus e lançar-se em sua busca. Sentirá, então, que não tem acesso a Deus." Após algum tempo, ela voltou e escrever: "Sim, tornei-me agora tão fraca que não posso fazer o esforço de me dirigir a Deus, nem sequer de desejá-lo ativamente, e Deus afastou-se." Porém eu lhe respondi: "Tente agora ir mais longe. Procure aprender a humildade no sentido verdadeiro e profundo da palavra."
A palavra "humildade" deriva da palavra latina "humus," que significa terra fértil. Para mim, a humildade não é aquilo que freqüentemente fazemos dela: trejeitos bobos ensaiados para parecermos os piores do mundo, tentando convencer outros de que os modos artificiais de nos comportarmos mostram que estamos conscientes disso. A humildade está expressa na situação da terra. A terra está sempre aí, pronta para tudo aceitar, nunca lembrada, constantemente pisada por todos, vazadouro onde despejamos tudo o que não presta, tudo aquilo de que não temos necessidade. Ei-la aí, silenciosa e tudo aceitando e milagrosamente transformando todos os resíduos em novas riquezas, apesar da corrupção; transformando até a corrupção em força vital e em novas possibilidades criativas; aberta à luz do sol, à chuva, pronta a receber qualquer semente que nós lancemos nela e capaz de produzir trinta, sessenta, cem por um. E eu dizia àquela mulher: "Aprenda a ser assim diante de Deus: abandonada, entregue, preparada para aceitar tudo das pessoas e tudo de Deus." Na verdade, ela foi obrigada a receber muito dos homens: passados seis meses, seu marido abandonou-a, cansado de uma mulher agonizante; assim, a recusa fluiu abundantemente. Mas, Deus fez brilhar a sua luz e fez cair a sua chuva. Efetivamente, passado algum tempo, ela me escreveu: "Estou nas últimas. Não consigo mover-me para Deus, mas Deus tem descido até mim."
Essa não é apenas uma história para ilustrar o que eu disse, mas um argumento em favor do tema em pauta: essa é a fraqueza na qual Deus pode manifestar o seu poder, e essa é a situação na qual a ausência de Deus pode tornar-se presença de Deus. Nós não podemos apoderar-nos de Deus. Todavia, quando permanecemos como o publicano ou como essa moça, fora do campo dos "direitos" e apenas no da misericórdia, podemos encontrar Deus.
Tentemos pensar na ausência de Deus e compreender: antes que possamos bater à porta, lembremo-nos de que não é apenas à porta do Reino entendido de modo geral, mas que Cristo disse realmente: "Eu sou a porta." Então, devemos compreender que nos encontramos do lado de fora. Se gastarmos o tempo de modo louco, achando que já nos encontramos no Reino de Deus, certamente não tem sentido batermos a qualquer porta para que se nos abra. Obviamente, devemos olhar à volta, tentando ver onde há anjos e santos e onde está a mansão que nos pertence e, quando nada mais virmos a não ser escuridão ou paredes, podemos legitimamente achar surpreendente que o paraíso seja tão sem atrativos. Todos temos de nos compenetrar de que ainda não estamos nele, de que ainda estamos do lado de fora do Reino de Deus; temos de nos perguntar a nós mesmos: "Onde está a porta e como bater a ela"?
No capítulo seguinte, tentaremos aprofundar este tema: como bater à porta e manter a expectativa de entrar, de chegar a ser um habitante do paraíso, do lugar onde é possível rezar.