Theotokos: Uma verdade da fé.
O Terceiro Concílio Ecumênico, realizado na Cidade de Efeso em 431, definiu com precisão a posição de fé de toda a Igreja a respeito do status da Sempre Virgem Maria:
“A Virgem Maria é a "Theotokos" porque ela deu à luz não um simples homem, mas sim, deu à luz “Deus que se fez homem”. A união das duas naturezas de Cristo realizou-se de tal forma perfeita que uma não se contrapõe à outra.“
A posição dogmática do Concílio visava fundamentalmente esclarecer os cristãos a respeito da natureza de Cristo, como Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem. Isso se fazia necessário porque hereges daquele tempo defendiam que Nosso Senhor era apenas homem, sendo então Maria a “Christotokos” (aquela que deu à luz Cristo).
Então, Maria, a Bem Aventurada e Sempre Virgem, é a Theotokos, em oposição ao herético Christotokos.
Ok, mas se temos em Christotokos “aquela que deu à luz Cristo”, o que literalmente significa o termo canônico Theotokos?
Literalmente, Theotokos é a junção de duas palavras (Deus e Parto), que juntas criam uma nova: Theotokos = A que pariu (deu à luz) Deus.
Theotokos e Mãe de Deus.
Naturalmente podemos considerar que aquela que dá à luz alguém é a mãe deste alguém.
E se este alguém é Deus, considerar “Mãe de Deus” como sendo um significado correto (em seu sentido profundo) para o Theotokos não é nenhum absurdo.
Contudo, é importante determinar que a Santa Igreja, ao longo do tempo, reservou outras formas de caracterizar a Sempre Virgem (e Theotokos) Maria.
A Igreja então, para além de Theotokos, também caracterizou Maria como a Mētēr tou Theou.
E o que vem a ser “Mētēr tou Theou”?
Literalmente: Mãe de Deus
Bom, com isso passamos a ter uma interessante questão: se a Igreja, ao cunhar o termo Theotokos, estava pretendendo denominar Maria como “A Mãe de Deus”, ainda que literalmente não seja esta a exata significação do Theotokos, por qual razão outro termo seria instituído, significando literalmente “Mãe de Deus”?
Temos então que considerar afirmativamente que o significado pretendido com o termo Theotokos é aquele já previsto em sua leitura mais literal: “aquela que deu à Luz Deus”, ainda que continue sendo totalmente lícito caracterizar que a Theotokos é também a Meter tou Theou, ou seja, a Mãe de Deus, pois a Igreja consagra as duas formas como lícitas, pertencentes ao entendimento ortodoxo da fé.
De todo modo, resta concluir que são duas caracterizações distintas, ainda que sinônimas em sua significância de fundo, mas inequivocamente distintas.
O leitor desta exposição pode neste momento inquirir qual a relevância, para além de uma saudável curiosidade sobre a etimologia das terminologias cristãs, desta reflexão. Pois afinal, se todos concordam que não há nenhuma dúvida que a Igreja consagra tanto o “Aquela que pariu Deus” como o “Mãe de Deus”, qual poderia ser a importância sobre as variações dos termos?
A importância é fundamentalmente litúrgica, mas diz também algo de valioso a respeito da fé ortodoxa.
Isso porque, para a Santa Ortodoxia, a vida litúrgica da Igreja não se trata de mera “tradição com T minúsculo”, como se dá em outras perspectivas.
Para a Ortodoxia, a vida litúrgica da Igreja diz muito sobre a própria fé viva da Igreja, pois em tudo o que ocorre liturgicamente, há desdobramentos (mais ou menos evidentes) em nossa forma de conceber a ortodoxia em nossas vidas.
E os termos “Theotokos” e Meter tou Theou, são utilizados de forma intercalada no desenvolvimento dos serviços divinos, tanto nos textos próprios do serviço, quanto em sua hinografia.
Talvez o leitor ainda não tenha compreendido qual é o “x” da questão deste artigo.
O ponto importante, e que dá sentido a esta exposição, é a situação particular da vida litúrgica da Igreja em um país “novo na fé” como o Brasil.
Pois aqui tratamos de traduzir “Theotokos” sempre como “Mãe de Deus”, sem deixar de traduzir também o “Meter tou Theou” da mesma maneira.
Assim, é desconhecida do fiel ortodoxo brasileiro a existência desta distinção terminológica entre Theotokos e Meter tou Theou, pois em nossas traduções ocorreu um corte desta pluralidade terminológica, em favor de uma simplificação.
Tradução Litúrgica: Ação Missionária e Catequética.
São duas as explicações comuns para a abrupta eliminação da tradução exata dos dois termos (a eliminação da correta tradução do termo Theotokos).
A primeira argumentação indica que seria complicado traduzir o significado de Theotokos de forma a caber no falar litúrgico, primordialmente por ser toda a liturgia Ortodoxa cantada.
Assim, “Mãe de Deus” cabe melhor ao substituir Theotokos do que o mais alongado “Aquela que pariu Deus”. Além de mais longo, o termo “pariu” é considerado grosseiro.
A outra explicação determina que “Mãe de Deus” é um termo muito caro à alma brasileira, que em sua origem cristã católico-romana, consolidou o termo na memória afetiva dos brasileiros.
A essas propostas de explicação, se fazem necessárias duas justas refutações.
A primeira é relativa às dificuldades com as muitas palavras do “Aquela que pariu Deus”.
Theotokos, em sua origem, também busca eliminar o alongamento do termo em muitas palavras, sendo o termo um neologismo com fins de sintetizar em uma nova palavra, uma idéia.
A criação de um termo novo que em nossa língua fosse um equivalente ao Theotokos resolveria tal questão, atendendo à precisão da tradução com a adequação ao canto litúrgico.
E este termo existe: Deípara é a palavra especialmente criada em nosso idioma para definir “Aquela que pariu Deus”.
Nunca Deípara, assim como Theotokos, será utilizado para descrever senão a Sempre Virgem Maria.
Deípara, assim como Theotokos, possui quatro sílabas, o que resolve a questão métrica relativa à forma cantada de nossos serviços divinos.
Relativo à segunda argumentação dos “simplificadores”, é certo que o termo “Mãe de Deus” é caro ao sentimento devocional dos brasileiros, e que o mesmo não podemos dizer sobre o correto Deípara (que embora seja uma palavra de nosso léxico, é por demais erudita, sem contato com o falar comum dos brasileiros).
Contudo, devemos considerar três coisas: com a tradução fiel e preservadora dos dois termos, não ocorreria a exclusão do termo “Mãe de Deus” em nossos serviços divinos, orações e hinos, pois como dito anteriormente, a forma original dos textos litúrgicos guarda o uso ora de um termo, ora de outro.
Então temos que longe de excluirmos o termo caro à afetividade dos brasileiros, teríamos a oportunidade de acrescentarmos um outro elemento, que seria com o tempo, naturalmente adicionado ao sentimento devoto dos ortodoxos brasileiros.
Uma terceira consideração, é que mesmo se a questão fosse a eliminação de um termo caro aos brasileiros (coisa que como vimos não ocorre, pois Mãe de Deus também é mantido), tal dificuldade deveria ser um argumento para basicamente ignoramos aquilo que nos foi legado pelos Santos Padres?
Pois não deve haver nenhuma dúvida: se nos ativermos à obrigação de nunca enfrentarmos aspectos caros à afetividade brasileira, notoriamente teremos que no implemento da fé Ortodoxa em nosso país, a submeter a alma nacional Pré-ortodoxa. E isso significa o mesmo que deixar de implementar a Ortodoxia, pois é o justamente o contrário que deve ocorrer: a Ortodoxia iluminando os elementos de uma cultura pré-ortodoxa.
Como um modelo para o nosso discernimento, devemos buscar saber como se deu a solução para estas questões (de tradução do original grego para a língua de outros povos) em outros povos, que em um dado momento histórico foram também “jovens na fé”.
E para nos atermos a tal formulação, nenhum outro exemplo seria mais precioso do que voltarmos no tempo e vislumbrarmos como se deu o processo de conversão dos povos eslavos à Santa Fé Ortodoxa.
Quando os Santos Iguais aos Apóstolos São Cirilo e São Metódio implementaram em sua saga missionária a formulação de um idioma que conformasse as formas nativas com o grego, a consolidação de uma exata tradução dos termos gregos para a nova “língua cristã” dos eslavos foi perseguida como sendo mesmo um importante elemento facilitador da conversão daqueles povos.
Assim, o termo “Bogorodice” surge exatamente como o Theotokos grego, como sendo aquela nova palavra que define exatamente (e unicamente) a característica dogmática consagrada a respeito da Sempre Virgem Maria: “aquela que pariu Deus”.
Não existiu qualquer problema, para que os eslavos pudessem também se referir à Bogorodice como a “Mãe de Deus”, pois eles puderam também traduzir esta definição em seu idioma: Mat' Bozhija.
Logo, onde em grego se estabelecia Theotokos, os eslavos conceberam Bogorodice, e onde o original constantinopolitano apresentava Meter tou Theou, era estabelecido o Mat Bozhija.
Para aqueles que possam caracterizar que o caso eslavo é particular, pois o idioma foi concebido como adaptação do grego, justamente para fins de conversão dos povos ao Cristianismo, podemos trazer a experiência da tradução dos termos gregos para os idiomas romeno e árabe.
No primeiro caso, temos que romenos utilizam para Theotokos o termo Născătoare de Dumnezeu, mas não deixam também de traduzir o Meter tou Theou: Maica Donmului.
Também os cristãos árabes souberam fazer a distinção de tradução (e preservação de ambos os termos), ao traduzirem Umm Allah e Walidat Allah, para os respectivos “Que pariu Deus” e “Mãe de Deus”.
Estaríamos então, nós, jovens cristãos ortodoxos brasileiros, de alguma forma autorizados a simplesmente suprimir os originais gregos, e nisso, ignorar a experiência e o exemplo dos povos cristianizados na Santa Ortodoxia há muito mais tempo do que nós ?
A recuperação do termo Deípara, por parte do cristianismo ortodoxo, poderá expressar o mais significativo exemplo de um genuíno esforço de conversão dos elementos nativos brasileiros sob iluminação da teologia ortodoxa, e devolver tal termo à língua falada dos brasileiros (apesar de serem ainda poucos os nativos de fé ortodoxa) é em si, um serviço da Igreja em favor da elevação da cultura nacional, pois a preservação do idioma, em suas formas mais eruditas consiste seguramente em um bem para a pátria, para os homens do nosso tempo e para as gerações futuras.
O colossal trabalho de implementação da santa fé ortodoxa no Brasil, exige de todos os envolvidos uma considerável dose de desprendimento.
Somente com a aceitação serena e consolidada de que somos nós aprendizes de outros povos que nos precederam na descoberta da verdadeira luz, podemos fazer com que no Brasil se faça o salvífico empreendimento da verdadeira missão ortodoxa, sem máculas, subtrações ou acréscimos, mas apenas Ortodoxia.
Este artigo será postado no Boletim paroquial "Palavra de Vida", distribuído mensalmente na Paróquia Ortodoxa Russa Santa Zenaide (Patriarcado de Moscou, RJ).